16.2.11

quem me dera saber fazer magia...



Aconchegada na cama, o sono a toldar-lhe o olhar e a adoçar-lhe a voz, murmurou:

- Às vezes apetecia-me tanto ser capaz de fazer magia...
- Sim? Porquê?
- Para fazer coisas malucas, coisas que não podem acontecer...
- Por exemplo...
- Por exemplo acordar amanhã de manhã com a cama cheia de animais sorridentes! Uma gatinha de olhos em flor, um pinguim de bico laranja e uma coruja com asas às riscas!!! Já imaginaste?
- Era engraçado...
- Pois, era engraçado, mas é impossível! Por isso é que eu gostava de saber fazer magia! Para fazer acontecer coisas difíceis ou impossíveis!
- Mas se calhar não precisas de saber fazer magia...
- Não?!?...
- Talvez não.... podes tentar de outra forma: fechas os olhos e deixas-te levar pelo sono, adormeces a pensar no teu desejo... pode ser que amanhã ele se realize.
- Mas estás a falar de quê?!? De uma espécie de fada que ouviu o que eu disse e vai realizar o meu desejo? Mãe... eu já não acredito em fadas, lembras-te? Nem em fadas, nem em Pai Natal, nem em nenhuma dessas coisas de crianças pequeninas... eu já tenho 9 anos!
- Não precisa de ser uma fada, um duende, um anjo ou outra figura fantástica... pode ser apenas alguém que gosta tanto e tanto de ti, que era capaz de dar a volta ao mundo inteiro numa só noite, para te trazer o que desejas agora...
- Isso era bom... mas ninguém consegue dar a volta ao mundo numa noite.
- Pois não, filha... tens razão. Agora vamos dormir.
- Boa noite, mamã.
- Boa noite, filha. Adormece a pensar no teu desejo, não te esqueças.

Aquela noite foi a mais longa de todas as noites de que se lembrava. De um emaranhado de lãs, agulhas e botões, fez nascer três criaturas coloridas. Quando terminou os últimos detalhes, suspirou e percebeu que era já madrugada. Pegou neles e cuidadosamente colocou-os à volta da almofada da menina sonhadora que dormia profundamente: uma gatinha de olhos em flor, um pinguim de bico laranja e uma coruja com asas às riscas.

26.10.10

Tempo


Acho que não existe na vida nada mais inconstante, imprevisível e subjectivo do que o tempo. Não o tempo em si mesmo, mas a ansiedade em que nos deixa quando passa por nós a correr, a tranquilidade quando se demora um pouco mais a contemplar-nos ou o desolamento quando se limita a existir, ignorando-nos completamente.
Ontem, imaginei e construí um quarto cheio de flores e cores, enchi armários e gavetas de roupas pequeninas, comprei brinquedos, inventei histórias e canções, percebi como era possível o mundo inteiro estar contido dentro de uma barriga redonda. Hoje, acordei com uma voz que me disse:
- Mamã, tens de me comprar um soutien!

Ontem? Hoje? Quanto tempo passou?
Muito, talvez... o meu colo já parece pequeno para um corpo que se tornou tão grande.
Pouco, tenho a certeza... tudo começou há pouquinho, há uns segundos atrás, acho que só tive tempo de pestanejar.

7.10.10

A ilha


Há tanto tempo que ansiava por sentir-se assim... livre, despreocupado, leve. Encheu o peito com aquele ar de maresia, inspirou até não poder mais e quando sentiu uma onda revolver-lhe o corpo, expirou devagarinho, deixando-se invadir por um vazio inexplicavelmente delicioso. Olhou em volta e viu mar por todo o lado. Levantou-se e sentiu os pés enterrarem-se naquela areia acastanhada (estranha cor quando se fala de areia!). Caminhou até à árvore que há muito o chamava, abraçou-se ao seu tronco, acariciou-o como se acaricia um corpo que se deseja. Nessa altura, sentiu que um cheiro doce e quente se soltava de cada um dos ramos daquela árvore, um cheiro estranho, misto de fruta e especiarias, algo desconhecido, mas extremamente excitante. Encostou-se mais ao tronco da árvore e sentiu-o mover-se devagar, como que a moldar-se ao seu próprio corpo. O silêncio era enorme, tão grande que o deixava ouvir o seu próprio pensamento.


De repente, um ruído estridente, irritante e repetitivo, fê-lo estremecer. Com o coração acelerado, abriu os olhos e viu um objecto preto com uns algarismos verdes: 06:00. Eram 6 horas da manhã, tempo de acordar.



14.7.10

Noite de Natal em Julho


Entrou e olhou à sua volta. Observou atentamente cada uma delas, mas rapidamente encontrou a que queria.
- Quero esta branca - disse para a empregada.
- Pode tirar, menina.
Retirou-a cuidadosamente do recipiente onde estava com muitas outras e dirigiu-se ao balcão.
- Vou fazer um arranjo bonito, está bem? Ponho uns raminhos verdes, um papel de celofane e ...
- Não, levo-a assim mesmo, tal como está - interrompeu.
A empregada olhou-a, com ar ofendido.
- Assim, sem mais nada?!? - perguntou.
- Sim, ponha só uma fitinha de cetim, pode ser aquela, côr-de-laranja.
- Está bem, mas olhe que esta é muito frágil, tem de a levar com cuidado, senão quebra - avisou.
- Sim, eu tenho cuidado.
Pagou e saiu.
Antes de retomar o caminho, dobrou o braço esquerdo em forma de alcofa e levou-a cuidadosamente, como um bebé recém-nascido. No caminho, foi buscar os filhos à escola. Vinham desalinhados e despenteados, mas com ar bem-disposto.
- Mãe, podemos ir ao parque? - perguntou o mais novo.
- Não, ao parque não, a mãe tinha dito que hoje íamos às compras - disse a menina.
- Compras?!? Eu quero ir ao parque!
Interrompendo a discussão, surgiu da esquina um homem, sujo e mal vestido, com um olhar jovem num rosto envelhecido.
- Minha senhora, dê-me qualquer coisa - pediu.
- Não tenho nada para lhe dar...
- Qualquer coisa, hoje ainda ninguém me deu nada... - insistiu.
Resignada, baixou os olhos e olhou para ela, tão branca, tão delicada. Pegou nela e estendeu-lha.
- Quer esta flor?
O homem ficou estático, depois sorriu.
- Sim, quero sim senhora. É muito bonita...
Antes de lha entregar, desatou a fita de cetim e guardou-a no bolso.
- Tome, cuide bem dela.
- Obrigada, vou cuidar.
Continuaram o seu caminho.
- Mãe, porque é que deste a flor ao senhor? - perguntou o filho.
- Pois, podias ter dado uma moeda - acrescentou a filha.
- Ele não queria moedas... - respondeu.
- Não?!?
- Não, ele queria outra coisa... queria atenção.
- Ahn - respondeu o pequenito, sem perceber nada.
- Claro! - respondeu convictamente a filha, na superioridade dos seus 9 anos.
- E afinal, sempre vamos ao parque?
- Não. Não vamos ao parque nem às compras. Hoje vamos fazer uma coisa especial - respondeu com voz misteriosa.
- O quê?!?
- Vamos festejar a noite de Natal!
- Hoje? Natal? Mas estamos em Julho, mamã - respondeu a filha.
- E depois? Está decidido: esta noite, em nossa casa vai ser Natal!
- Mas não temos árvore de Natal...
- Temos a laranjeira do quintal.
- Pois é!... - o pequeno começava a ficar entusiasmado.
- Sim, mas os enfeites estão em casa da avó - lembrou a menina.
- Arranjamos outros - respondeu a mãe. Meteu a mão no bolso e tirou a fita de cetim.
- E o que vamos comer?
- Eu trato disso. Faço biscoitos e bolo de iogurte - respondeu a filha.
A mãe parou subitamente e olhando para cada um dos filhos, disse sorridente:
- Então, estamos combinados. Tu tratas do jantar, Margarida. E tu, David, tratas das decorações.
- Mamã, mas não temos luzinhas para pôr na árvore de Natal... - disse o menino.
- Mas temos todas as estrelas do céu a brilhar... e temos uma, maior e mais brilhante, que é só nossa e nos vai iluminar toda a noite! - respondeu docemente a mãe.
- Está bem, vamos embora então, temos muito que fazer! - disse a menina, com ar atarefado.
A mãe no meio, um filho de cada lado, de mãos dadas, apressaram o passo e subiram rapidamente a rua, tão rapidamente que, quando chegaram ao cimo, pararam para recuperar o fôlego. Foi nessa altura que o menino, na inocência dos seus 6 anos, olhou para a mãe e disse:
- Mamã, no Natal nasce o menino Jesus, não é? Então, se hoje é Natal em nossa casa, quem é que vai nascer?!?
A mãe sorriu enternecida, olhou para um e para outro e respondeu:
- Hoje nascem muitas coisas... nasce o primeiro bolo de iogurte da Margarida... nasce uma árvore de Natal no quintal... nascem os enfeites inventados pelo David... nascem a lua e as estrelas quando anoitecer... e vamos estar toda a noite acordados!
- Toda a noite?? - perguntou, incrédula, a menina.
- Fixe!!! - disse o pequenito.
- Sim, toda a noite acordados, toda a noite juntos, a comemorar o que nos apetecer, iluminados pela luz branca daquela estrela de que vos falei, a maior e mais brilhante do céu, aquela que é só nossa.


Para a I., estrela branca e brilhante... para a M.R., que sabe que em Julho também pode haver noites de Natal... um beijo no coração.





8.6.10

Os olhos do desejo

De tanto a imaginar, de tanto a desejar... era como se a conhecesse desde sempre.  Bastava-lhe fechar os olhos e esvaziar a cabeça para a ver... o olhar meigo e profundo, as curvas do rosto, a maciez do cabelo desalinhado. Tudo passava a ser incrivelmente familiar, como se sempre estivesse ali, bem ao seu lado... ao adormecer, ao acordar... na cumplicidade dos dias e das noites, nascida dos segredos partilhados, das palavras adivinhadas, dos desejos pressentidos.
De tanto a imaginar... era como se a vida nunca tivesse existido sem ela.
De tanto a desejar... era como se o amor não fizesse sentido sem ela.


O telefone tocou. Abriu os olhos e deixou de a ver. Desoladamente, levantou-se do sofá e foi trabalhar.
Estava frio e chovia.



1.5.10

Era uma vez o amor


Um olhar cruzado, primeiro fugidio, depois mais prolongado e curioso. Uma palavra nova que, voando no ar, se despedaça para renascer num dicionário entretanto inventado. Um calor intenso que confunde o frio e rapidamente se transforma num fogo indomável. Duas mãos que se tocam, uma promessa num sorriso e, no peito, um coração a pular. Uma vida que chama, uma descoberta inesperada, uma certeza inabalável... uma barriga redonda... era uma vez o amor.

17.4.10

As voltas da vida


Não daria por ele, se não tivesse ouvido o ruído de chaves a cair no chão. Voltou-se, fez o gesto delicado de se baixar para ajudar, mas já ele se erguia com elas na mão. Respondeu timidamente ao sorriso que ele esboçou e voltou à posição inicial. Teve de esperar alguns minutos até chegar a sua vez e isso agradou-lhe, gostava de o sentir atrás de si, assim tão perto. A empregada olhava-a agora com um ar impaciente e algo irritado. Pediu o que queria e pagou. Virou-se para sair da fila e não conseguiu deixar de olhá-lo uma vez mais. Sentiu um calor intenso na face.
Passados 15 minutos, estava sentada na cadeira do cinema. Aborrecia-lhe aquela parte inicial da publicidade, mas captou-lhe a atenção aquele anúncio, ou melhor, a frase de conclusão daquele anúncio publicitário: todas as voltas que damos na vida, por mais longas que sejam, terminam ou terminarão um dia num ponto central da nossa existência. Ficou a pensar naquela ideia, principalmente no "ponto central da nossa existência"...
Claro! - pensou, esse ponto central é o último dia, o último instante da nossa vida, aquele que anuncia o fim da viagem e que faz convergir para si a rota de todas as voltas da vida!
Entre reflexões e constatações, o filme começou. De repente, chegou até si um aroma fresco, um perfume que lhe pareceu familiar e sentiu que, sem ter dado conta, alguém estava sentado na cadeira ao seu lado. Sentiu-se irritada... com tantas cadeiras vazias, tinha de se sentar mesmo aqui- pensou. Foi então que ouviu um ruído que o silêncio da sala de cinema ampliou significativamente. Um ruído de chaves a cair no chão. Sentiu um calor intenso na face, respirou fundo e olhou para o lado.