17.4.10

As voltas da vida


Não daria por ele, se não tivesse ouvido o ruído de chaves a cair no chão. Voltou-se, fez o gesto delicado de se baixar para ajudar, mas já ele se erguia com elas na mão. Respondeu timidamente ao sorriso que ele esboçou e voltou à posição inicial. Teve de esperar alguns minutos até chegar a sua vez e isso agradou-lhe, gostava de o sentir atrás de si, assim tão perto. A empregada olhava-a agora com um ar impaciente e algo irritado. Pediu o que queria e pagou. Virou-se para sair da fila e não conseguiu deixar de olhá-lo uma vez mais. Sentiu um calor intenso na face.
Passados 15 minutos, estava sentada na cadeira do cinema. Aborrecia-lhe aquela parte inicial da publicidade, mas captou-lhe a atenção aquele anúncio, ou melhor, a frase de conclusão daquele anúncio publicitário: todas as voltas que damos na vida, por mais longas que sejam, terminam ou terminarão um dia num ponto central da nossa existência. Ficou a pensar naquela ideia, principalmente no "ponto central da nossa existência"...
Claro! - pensou, esse ponto central é o último dia, o último instante da nossa vida, aquele que anuncia o fim da viagem e que faz convergir para si a rota de todas as voltas da vida!
Entre reflexões e constatações, o filme começou. De repente, chegou até si um aroma fresco, um perfume que lhe pareceu familiar e sentiu que, sem ter dado conta, alguém estava sentado na cadeira ao seu lado. Sentiu-se irritada... com tantas cadeiras vazias, tinha de se sentar mesmo aqui- pensou. Foi então que ouviu um ruído que o silêncio da sala de cinema ampliou significativamente. Um ruído de chaves a cair no chão. Sentiu um calor intenso na face, respirou fundo e olhou para o lado.

7.4.10

Voar

Se ela fosse um animal seria, com toda a certeza, uma ave. Uma ave bizarra e colorida.
Quem lhe dera ser um animal... quem lhe dera ser uma ave...
Ser ave é muito melhor do que ser pessoa! Poder saltitar entre os ramos das árvores, poder caminhar no solo quando a descoberta se faz na terra... e poder abrir as asas e voar, sempre que a liberdade segreda ao ouvido promessas de aventura!
Hoje apetecia-lhe ser um animal, uma ave.
Mas descobriu que não o era porque quando estava deitada na cama com os braços abertos a fingir de asas e com o tecto do quarto a fazer de céu interminável, o telefone tocou... e o vôo terminou.
As aves voam... e as pessoas pensam que, às vezes, também são capazes de voar, mas... não são!