14.3.10

A caixa



Há duas horas que dava voltas e mais voltas na cama. Virava-se para um lado, fechava os olhos, tentava limpar o pensamento mas, quando dava conta, já estava de olhos abertos e com a cabeça a latejar de ideias. Cansada daquela luta inglória contra a insónia, levantou-se. Estava frio e arrepiou-se. Abriu uma gaveta da cómoda e tirou a caixa. Levou-a na mão e sentou-se na beira da cama. Percorreu com o dedo o bordado da tampa, sentiu a maciez fria do botão brilhante, contornou cada uma das pequenas flores cor-de-rosa. Abriu-a. Como sempre, logo que a destapou, sentiu aquela familiar brisa no rosto, uma pequena tempestade a soltar-se de dentro daquela caixa negra e, aos poucos, viu-as sair, isoladas ou em pequenos grupos, umas mais suavemente, outras mais efusivas. Aos poucos, foram enchendo o quarto, espalharam-se pelo tecto, pelas paredes, amontoaram-se nos móveis, penduraram-se nas cortinas, agarraram-se aos seus cabelos... de um momento para o outro, a caixa estava vazia e à sua volta... palavras, muitas palavras, curtas ou mais longas, verbos, adjectivos e substantivos, palavras doces e palavras amargas, palavras redondas ou ponteagudas, as palavras aprisionadas e agora libertadas aguardavam ansiosamente o seu próximo passo. Olhou em volta e procurou-a. Não era fácil encontrá-la, eram tantas e todas tão sedutoras! Foi guardando na caixa as que não queria, as agressivas, os verbos, as frustradas, as interrogativas, as exclamativas...e aos poucos a quarto foi ficando de novo mais vazio, sobrando aqui e ali algumas palavras expectantes. Espreitou atrás de uma moldura e lá estava ela, a que procurava, a palavra de que precisava naquela noite de insónia. Apanhou as que ainda restavam no quarto, juntou-as, colocou a tampa e voltou a meter a caixa negra das palavras guardadas na gaveta da cómoda. Depois, pegou cuidadosamente na palavra escondida atrás da moldura, aconchegou-a na mão e voltou a deitar-se na cama já fria. Abriu um pouco a mão e olhou para ela, sussurando: MELANCOLIA. Fechou a mão, apagou a luz e tentou adormecer.