26.10.10

Tempo


Acho que não existe na vida nada mais inconstante, imprevisível e subjectivo do que o tempo. Não o tempo em si mesmo, mas a ansiedade em que nos deixa quando passa por nós a correr, a tranquilidade quando se demora um pouco mais a contemplar-nos ou o desolamento quando se limita a existir, ignorando-nos completamente.
Ontem, imaginei e construí um quarto cheio de flores e cores, enchi armários e gavetas de roupas pequeninas, comprei brinquedos, inventei histórias e canções, percebi como era possível o mundo inteiro estar contido dentro de uma barriga redonda. Hoje, acordei com uma voz que me disse:
- Mamã, tens de me comprar um soutien!

Ontem? Hoje? Quanto tempo passou?
Muito, talvez... o meu colo já parece pequeno para um corpo que se tornou tão grande.
Pouco, tenho a certeza... tudo começou há pouquinho, há uns segundos atrás, acho que só tive tempo de pestanejar.

7.10.10

A ilha


Há tanto tempo que ansiava por sentir-se assim... livre, despreocupado, leve. Encheu o peito com aquele ar de maresia, inspirou até não poder mais e quando sentiu uma onda revolver-lhe o corpo, expirou devagarinho, deixando-se invadir por um vazio inexplicavelmente delicioso. Olhou em volta e viu mar por todo o lado. Levantou-se e sentiu os pés enterrarem-se naquela areia acastanhada (estranha cor quando se fala de areia!). Caminhou até à árvore que há muito o chamava, abraçou-se ao seu tronco, acariciou-o como se acaricia um corpo que se deseja. Nessa altura, sentiu que um cheiro doce e quente se soltava de cada um dos ramos daquela árvore, um cheiro estranho, misto de fruta e especiarias, algo desconhecido, mas extremamente excitante. Encostou-se mais ao tronco da árvore e sentiu-o mover-se devagar, como que a moldar-se ao seu próprio corpo. O silêncio era enorme, tão grande que o deixava ouvir o seu próprio pensamento.


De repente, um ruído estridente, irritante e repetitivo, fê-lo estremecer. Com o coração acelerado, abriu os olhos e viu um objecto preto com uns algarismos verdes: 06:00. Eram 6 horas da manhã, tempo de acordar.



14.7.10

Noite de Natal em Julho


Entrou e olhou à sua volta. Observou atentamente cada uma delas, mas rapidamente encontrou a que queria.
- Quero esta branca - disse para a empregada.
- Pode tirar, menina.
Retirou-a cuidadosamente do recipiente onde estava com muitas outras e dirigiu-se ao balcão.
- Vou fazer um arranjo bonito, está bem? Ponho uns raminhos verdes, um papel de celofane e ...
- Não, levo-a assim mesmo, tal como está - interrompeu.
A empregada olhou-a, com ar ofendido.
- Assim, sem mais nada?!? - perguntou.
- Sim, ponha só uma fitinha de cetim, pode ser aquela, côr-de-laranja.
- Está bem, mas olhe que esta é muito frágil, tem de a levar com cuidado, senão quebra - avisou.
- Sim, eu tenho cuidado.
Pagou e saiu.
Antes de retomar o caminho, dobrou o braço esquerdo em forma de alcofa e levou-a cuidadosamente, como um bebé recém-nascido. No caminho, foi buscar os filhos à escola. Vinham desalinhados e despenteados, mas com ar bem-disposto.
- Mãe, podemos ir ao parque? - perguntou o mais novo.
- Não, ao parque não, a mãe tinha dito que hoje íamos às compras - disse a menina.
- Compras?!? Eu quero ir ao parque!
Interrompendo a discussão, surgiu da esquina um homem, sujo e mal vestido, com um olhar jovem num rosto envelhecido.
- Minha senhora, dê-me qualquer coisa - pediu.
- Não tenho nada para lhe dar...
- Qualquer coisa, hoje ainda ninguém me deu nada... - insistiu.
Resignada, baixou os olhos e olhou para ela, tão branca, tão delicada. Pegou nela e estendeu-lha.
- Quer esta flor?
O homem ficou estático, depois sorriu.
- Sim, quero sim senhora. É muito bonita...
Antes de lha entregar, desatou a fita de cetim e guardou-a no bolso.
- Tome, cuide bem dela.
- Obrigada, vou cuidar.
Continuaram o seu caminho.
- Mãe, porque é que deste a flor ao senhor? - perguntou o filho.
- Pois, podias ter dado uma moeda - acrescentou a filha.
- Ele não queria moedas... - respondeu.
- Não?!?
- Não, ele queria outra coisa... queria atenção.
- Ahn - respondeu o pequenito, sem perceber nada.
- Claro! - respondeu convictamente a filha, na superioridade dos seus 9 anos.
- E afinal, sempre vamos ao parque?
- Não. Não vamos ao parque nem às compras. Hoje vamos fazer uma coisa especial - respondeu com voz misteriosa.
- O quê?!?
- Vamos festejar a noite de Natal!
- Hoje? Natal? Mas estamos em Julho, mamã - respondeu a filha.
- E depois? Está decidido: esta noite, em nossa casa vai ser Natal!
- Mas não temos árvore de Natal...
- Temos a laranjeira do quintal.
- Pois é!... - o pequeno começava a ficar entusiasmado.
- Sim, mas os enfeites estão em casa da avó - lembrou a menina.
- Arranjamos outros - respondeu a mãe. Meteu a mão no bolso e tirou a fita de cetim.
- E o que vamos comer?
- Eu trato disso. Faço biscoitos e bolo de iogurte - respondeu a filha.
A mãe parou subitamente e olhando para cada um dos filhos, disse sorridente:
- Então, estamos combinados. Tu tratas do jantar, Margarida. E tu, David, tratas das decorações.
- Mamã, mas não temos luzinhas para pôr na árvore de Natal... - disse o menino.
- Mas temos todas as estrelas do céu a brilhar... e temos uma, maior e mais brilhante, que é só nossa e nos vai iluminar toda a noite! - respondeu docemente a mãe.
- Está bem, vamos embora então, temos muito que fazer! - disse a menina, com ar atarefado.
A mãe no meio, um filho de cada lado, de mãos dadas, apressaram o passo e subiram rapidamente a rua, tão rapidamente que, quando chegaram ao cimo, pararam para recuperar o fôlego. Foi nessa altura que o menino, na inocência dos seus 6 anos, olhou para a mãe e disse:
- Mamã, no Natal nasce o menino Jesus, não é? Então, se hoje é Natal em nossa casa, quem é que vai nascer?!?
A mãe sorriu enternecida, olhou para um e para outro e respondeu:
- Hoje nascem muitas coisas... nasce o primeiro bolo de iogurte da Margarida... nasce uma árvore de Natal no quintal... nascem os enfeites inventados pelo David... nascem a lua e as estrelas quando anoitecer... e vamos estar toda a noite acordados!
- Toda a noite?? - perguntou, incrédula, a menina.
- Fixe!!! - disse o pequenito.
- Sim, toda a noite acordados, toda a noite juntos, a comemorar o que nos apetecer, iluminados pela luz branca daquela estrela de que vos falei, a maior e mais brilhante do céu, aquela que é só nossa.


Para a I., estrela branca e brilhante... para a M.R., que sabe que em Julho também pode haver noites de Natal... um beijo no coração.





8.6.10

Os olhos do desejo

De tanto a imaginar, de tanto a desejar... era como se a conhecesse desde sempre.  Bastava-lhe fechar os olhos e esvaziar a cabeça para a ver... o olhar meigo e profundo, as curvas do rosto, a maciez do cabelo desalinhado. Tudo passava a ser incrivelmente familiar, como se sempre estivesse ali, bem ao seu lado... ao adormecer, ao acordar... na cumplicidade dos dias e das noites, nascida dos segredos partilhados, das palavras adivinhadas, dos desejos pressentidos.
De tanto a imaginar... era como se a vida nunca tivesse existido sem ela.
De tanto a desejar... era como se o amor não fizesse sentido sem ela.


O telefone tocou. Abriu os olhos e deixou de a ver. Desoladamente, levantou-se do sofá e foi trabalhar.
Estava frio e chovia.



1.5.10

Era uma vez o amor


Um olhar cruzado, primeiro fugidio, depois mais prolongado e curioso. Uma palavra nova que, voando no ar, se despedaça para renascer num dicionário entretanto inventado. Um calor intenso que confunde o frio e rapidamente se transforma num fogo indomável. Duas mãos que se tocam, uma promessa num sorriso e, no peito, um coração a pular. Uma vida que chama, uma descoberta inesperada, uma certeza inabalável... uma barriga redonda... era uma vez o amor.

17.4.10

As voltas da vida


Não daria por ele, se não tivesse ouvido o ruído de chaves a cair no chão. Voltou-se, fez o gesto delicado de se baixar para ajudar, mas já ele se erguia com elas na mão. Respondeu timidamente ao sorriso que ele esboçou e voltou à posição inicial. Teve de esperar alguns minutos até chegar a sua vez e isso agradou-lhe, gostava de o sentir atrás de si, assim tão perto. A empregada olhava-a agora com um ar impaciente e algo irritado. Pediu o que queria e pagou. Virou-se para sair da fila e não conseguiu deixar de olhá-lo uma vez mais. Sentiu um calor intenso na face.
Passados 15 minutos, estava sentada na cadeira do cinema. Aborrecia-lhe aquela parte inicial da publicidade, mas captou-lhe a atenção aquele anúncio, ou melhor, a frase de conclusão daquele anúncio publicitário: todas as voltas que damos na vida, por mais longas que sejam, terminam ou terminarão um dia num ponto central da nossa existência. Ficou a pensar naquela ideia, principalmente no "ponto central da nossa existência"...
Claro! - pensou, esse ponto central é o último dia, o último instante da nossa vida, aquele que anuncia o fim da viagem e que faz convergir para si a rota de todas as voltas da vida!
Entre reflexões e constatações, o filme começou. De repente, chegou até si um aroma fresco, um perfume que lhe pareceu familiar e sentiu que, sem ter dado conta, alguém estava sentado na cadeira ao seu lado. Sentiu-se irritada... com tantas cadeiras vazias, tinha de se sentar mesmo aqui- pensou. Foi então que ouviu um ruído que o silêncio da sala de cinema ampliou significativamente. Um ruído de chaves a cair no chão. Sentiu um calor intenso na face, respirou fundo e olhou para o lado.

7.4.10

Voar

Se ela fosse um animal seria, com toda a certeza, uma ave. Uma ave bizarra e colorida.
Quem lhe dera ser um animal... quem lhe dera ser uma ave...
Ser ave é muito melhor do que ser pessoa! Poder saltitar entre os ramos das árvores, poder caminhar no solo quando a descoberta se faz na terra... e poder abrir as asas e voar, sempre que a liberdade segreda ao ouvido promessas de aventura!
Hoje apetecia-lhe ser um animal, uma ave.
Mas descobriu que não o era porque quando estava deitada na cama com os braços abertos a fingir de asas e com o tecto do quarto a fazer de céu interminável, o telefone tocou... e o vôo terminou.
As aves voam... e as pessoas pensam que, às vezes, também são capazes de voar, mas... não são!


14.3.10

A caixa



Há duas horas que dava voltas e mais voltas na cama. Virava-se para um lado, fechava os olhos, tentava limpar o pensamento mas, quando dava conta, já estava de olhos abertos e com a cabeça a latejar de ideias. Cansada daquela luta inglória contra a insónia, levantou-se. Estava frio e arrepiou-se. Abriu uma gaveta da cómoda e tirou a caixa. Levou-a na mão e sentou-se na beira da cama. Percorreu com o dedo o bordado da tampa, sentiu a maciez fria do botão brilhante, contornou cada uma das pequenas flores cor-de-rosa. Abriu-a. Como sempre, logo que a destapou, sentiu aquela familiar brisa no rosto, uma pequena tempestade a soltar-se de dentro daquela caixa negra e, aos poucos, viu-as sair, isoladas ou em pequenos grupos, umas mais suavemente, outras mais efusivas. Aos poucos, foram enchendo o quarto, espalharam-se pelo tecto, pelas paredes, amontoaram-se nos móveis, penduraram-se nas cortinas, agarraram-se aos seus cabelos... de um momento para o outro, a caixa estava vazia e à sua volta... palavras, muitas palavras, curtas ou mais longas, verbos, adjectivos e substantivos, palavras doces e palavras amargas, palavras redondas ou ponteagudas, as palavras aprisionadas e agora libertadas aguardavam ansiosamente o seu próximo passo. Olhou em volta e procurou-a. Não era fácil encontrá-la, eram tantas e todas tão sedutoras! Foi guardando na caixa as que não queria, as agressivas, os verbos, as frustradas, as interrogativas, as exclamativas...e aos poucos a quarto foi ficando de novo mais vazio, sobrando aqui e ali algumas palavras expectantes. Espreitou atrás de uma moldura e lá estava ela, a que procurava, a palavra de que precisava naquela noite de insónia. Apanhou as que ainda restavam no quarto, juntou-as, colocou a tampa e voltou a meter a caixa negra das palavras guardadas na gaveta da cómoda. Depois, pegou cuidadosamente na palavra escondida atrás da moldura, aconchegou-a na mão e voltou a deitar-se na cama já fria. Abriu um pouco a mão e olhou para ela, sussurando: MELANCOLIA. Fechou a mão, apagou a luz e tentou adormecer.

9.2.10

A árvore do amor


Perguntaram-me como nasce o amor. Respondi que nasce espontâneamente, sem ser programado, nasce naturalmente de um gesto, de um olhar, de uma palavra com sentido... pensando bem, acho que o amor nasce de uma árvore que existe bem escondida na floresta dos afectos. Uma árvore forte e vigorosa, repleta de frutos, repleta de amor... basta estender a mão e acolher com carinho aquele coração que se soltou na nossa direcção.

25.1.10

Flor de Inverno


Há meia hora que não conseguia tirar os olhos dela.
Estava completamente hipnotizado por aquele sorriso quente, por aquele olhar negro e fugidio. Observava os gestos sem querer saber o significado, ouvia as palavras sem querer desvendar o sentido, olhava-a simplesmente e isso deixava-o feliz.
Levantou-se devagar, foi ao seu encontro, parou à sua frente, olhou-a nos olhos e perguntou:
- Como te chamas?
- Porque queres saber?
- De tanto te olhar já te conheço bem, mas falta-me o nome, um nome para te chamar...
Ela fitou-o com um ar cúmplice. Ele sentiu um aroma fresco, lembrou-se do cheiro da relva molhada pela chuva.
- Podes chamar-me o que quiseres.
- Sim? Então vou chamar-te Flor de Inverno.
- Flor de Inverno... flor rara.. flor única... flor efémera?
- Não, simplesmente Flor de Inverno.


5.1.10

Se amanhã chover...

Se amanhã chover, pego em ti ao colo, meto-te debaixo da minha gabardine e vamos descobrir o mundo, saltitando alegremente por entre as gotas de chuva. Se amanhã chover, ficamos em casa, ligamos a música e dançamos o dia inteiro. Se amanhã chover, compramos pincéis e tintas e pintamos o dia de todas as cores do arco-íris. Se amanhã chover, brincamos aos circos, tu equilibrista e eu malabarista. Se amanhã chover, lemos um livro, vemos um filme, fazemos um espectáculo. Se amanhã chover,  metes-te devagarinho na cama ao meu lado, de manhã bem cedinho, encostas a cara morna ao meu ombro e dizes bom dia, mamã! Eu procuro o teu ouvido e, num sussuro quase beijo, digo-te de mansinho está a chover, dorme mais um bocadinho.