23.12.09

Quando um homem decide recordar...



Naquele dia, sem saber muito bem porquê, apeteceu-lhe procurá-lo na gaveta das recordações. Entre folhas amarrotadas, caixas, bilhetes de cinema e postais antigos, perdido entre todos aqueles pedaços de memória, encontrou-o, embrulhado em papel crepe azul desbotado. O tecido parecia envelhecido, mas a imagem mantinha-se apelativa e colorida; aquela pintura de Klimt sempre fora uma das suas preferidas e a paixão daquele Beijo parecia ainda tão real, tão viva... Abriu-o lentamente e fez deslizar entre os dedos as bolsas plásticas feitas para guardar as fotografias. Estava vazio... completamente vazio. Sentou-se na cama e permitiu a si próprio mergulhar uma vez mais naquele mar de recordações. Folheava cada página vazia do álbum e ia recordando todos os momentos, revivendo todas as sensações e emoções, todos aqueles instantes que nenhuma máquina fotográfica conseguiu capturar, que nenhum álbum conseguiu guardar... a melhor máquina fotográfica é o olhar e o melhor álbum de fotografias aquele que existe escondido na memória de um homem que, um dia, decide recordar.


19.12.09

Filha começa com a letra M...


- Mãe, diz-me palavras começadas por m!
- Música, maresia, madrugada, morango, malmequer, manhã, mistério, maravilhosa, magnífica ... bonita, suave, um colar num pescoço macio, um sorriso de mel ...
- Mãe, essas não valem!
- Menina linda, menina querida, meu amor, meu tesouro, minha flor...
- Mãe, essas não dão! ...
- Está bem, só para terminar mais uma ... adivinha!
- Dá-me uma pista ...
- Filha querida ....
- O meu nome!
- Acertaste ...

7.12.09

A fada de Natal...

Era noite de Natal.
A casa estava quente, perfumada e barulhenta, como acontecia em todas as noites de Natal de que se lembrava. Apesar da animação dos adultos e da agitação dos miúdos, ela sentia uma tristeza sem fim. Sentiu que precisava de se isolar um pouco daquele ambiente festivo, que precisava de uns instantes a sós consigo própria, antes de se deixar levar na noite mais longa do ano.
Foi para o seu quarto certa de que, no seu mundo privado, se sentiria livre para soltar a lágrima que há muito lhe inundava o olhar. Fechou a porta do quarto atrás de si e deixou-se estar às escuras, de olhos fechados, encostada à parede. Quando voltou a abrir os olhos, viu um clarão de luz azulada e cintilante que vinha do lado da janela. Verificou que o candeeiro continuava desligado e perguntou a si própria de onde vinha toda aquela luminosidade. A medo, deu dois passos e, quando espreitou para o interior do quarto, viu um ser pequenino de pé em cima da sua cama, que lhe disse suavemente :


- Não te assustes, por favor ...
- Quem és tu? - perguntou, receosa e estupefacta.
- Sou a Fada do Natal. Não me conheces?
- Fada do Natal?!? Não, não conheço. Conheço o Espírito de Natal e o Pai Natal, mas da Fada do Natal nunca ouvi falar ...
- Pois, compreendo ... normalmente as pessoas não me vêem nem me ouvem, mas olha que sou muito importante no natal de todas as pessoas do mundo!
- Ah sim? E porquê? - perguntou, estranhamente tranquila.
- Senta-te aqui na cama, perto de mim, vou contar-te.

Aproximou-se, sentou-se na beira da cama e olhou bem para ela. Era pequenina, tinha cabelos castanhos e olhos muito pretos. Vestia-se com um longo vestido vermelho e um cachecol branco e tinha na mão uma estrela. De facto, tinha um ar bastante natalício ...
- E então? Dizias que és muito importante no Natal ...
- Sim, é verdade. Trabalho o ano inteiro em colaboração com o Pai Natal. Como sabes, com as crianças não é difícil perceber quais são os seus desejos ... Como as cartas que escrevem ao Pai Natal são bem claras, não deixam dúvidas quanto aos seus pedidos. Mas, com os adultos, é um pouco diferente ...
- Pois, na verdade os adultos não costumam escrever cartas ao Pai Natal. Eu, pelo menos, desde os 7 anos que não o faço ...
- Os adultos não escrevem cartas, mas fazem os seus pedidos de um modo muito mais difícil de adivinhar ... é quase como se escrevessem uma carta com o pensamento, mas esta carta nunca segue o seu destino, fica dentro de cada pessoa.
- É, os adultos são mesmo complicados ...
- Pois o meu trabalho é exactamente esse, descobrir o que cada pessoa mais deseja em cada natal, transmiti-lo ao Pai Natal e, juntos, tentarmos realizar esse desejo.
- Que trabalho tão bonito que tu tens! - respondeu, agora já completamente deslumbrada por aquela pequenina fada de voz doce.
- Mas o que hoje me traz aqui não é bem isso ...
- E o que vieste fazer aqui, afinal?
- Vim dizer-te que o teu desejo de natal não pode ser realizado.
- Sim, eu já sabia disso ... - respondeu baixinho, sentindo de novo o nó na garganta.
- Quando naquela noite de tempestade, acordaste a chorar, formulaste o teu pedido, lembras-te?
- Lembro, sim.
- Eu estava atenta e contei ao Pai Natal o teu desejo. Claro que percebemos logo que não iria ser possível ...
- Eu sei, não precisas de explicar, há coisas que não têm retorno ...
- Exactamente, o teu desejo não pode ser realizado, mas tenho uma sugestão a fazer-te...
- Qual é? - perguntou, cheia de expectativa.
- Vai até à janela e espreita lá para fora.
Fez o que a fada lhe indicou, dirigiu-se à janela, abriu-a e olhou para o exterior. Sentiu o ar gelado da noite arrefecer-lhe as faces coradas.
- E agora? O que faço? - perguntou.
- Olha para o céu ...
- Sim, já estou a olhar, está cheio de estrelas, acho que amanhã vai estar sol.
- Estás a vê-la?
- Quem?!?
- Procura bem, olha para o céu com atenção, quando a vires vais perceber.
Olhou atentamente para o céu estrelado. De repente, o seu olhar fixou-se numa estrela que parecia maior do que todas as outras, mais brilhante, mais radiosa.
- Sim, estou a vê-la! -- exclamou alegremente.
- Então olha fixamente para ela e pensa com toda a força no teu desejo.
Seguiu as orientações da fada, olhou para a estrela, abstraindo-se das outras e, aos poucos, começou a distinguir uma forma, parecia um rosto, um rosto familiar, um rosto que amava.
- Sim, estou a vê-lo ... - murmurou.
- Agora volta para dentro, ainda te constipas!
Fechou a janela, voltou a sentar-se na cama, enxugando com a mão as lágrimas que lhe molhavam a cara.
- Percebeste agora o que vim fazer aqui?
- Acho que sim - respondeu com um sorriso tímido nos lábios.
- Vim dizer-te que o Pai Natal não pode oferecer-te o que lhe pediste, da forma como o pediste. Mas lá em cima, está um outro presente de natal ... sempre que o quiseres admirar, basta abrires uma janela e procurares a estrela mais brilhante de todas.
- Obrigada - respondeu.
- Não tens que agradecer. Toma esta estrela, foi feita pelo Pai Natal e vai servir para te lembrar que, mesmo nas noites de tempestade, em que as nuvens carregadas escondem o céu estrelado, a tua estrela continua lá, só tens que esperar que a chuva passe.
Estendeu a mão e pegou na pequena estrela que a fada lhe entregava.
- Tenho de ir embora, tenho outras coisas para tratar ... Junta-te a tua família, vai divertir-te um pouco ... Até qualquer dia!
- Obrigada! Adeus!
Dirigiu-se para a porta do quarto, olhou para trás e acenou-lhe.
Entrou na sala com a pequena estrela guardada na mão, pendurou-a na árvore de natal, abriu as cortinas das janelas e deixou entrar a noite.
- Vamos jantar! Já são horas! - exclamou numa voz alegre.
Sentada à mesa no seu lugar habitual, no meio da confusão de travessas e pratos, crianças e risos, olhou através da janela e viu a sua estrela, a maior e mais brilhante de todas as estrelas do céu. O seu presente de natal, nesse ano, tinha chegado antes da meia-noite!

Esta fada e esta história são um presente feito com todo o carinho do mundo para uma amiga muito especial que, neste Natal, não vai ter o presente que pediu. Na noite mais longa do ano, olha para o céu, querida amiga e procura a estrela maior e mais brilhante de todas.
Feliz Natal, E.!

18.11.09

O bosque


A estrada, estreita e poeirenta, começava a parecer-lhe interminável. Sentia-se impaciente. Fez a curva apertada à direita e assustou-se, quase não conseguia dominar o carro. Percebeu que ia depressa demais naquela estrada secundária, abrandou, antes que a pressa lhe matasse os planos. Na sua cabeça, a dúvida não lhe dava tréguas - será que vou conseguir encontrá-lo? Avistou um caminho à direita. Desviou lentamente da estrada e, ao longe, pareceu-lhe ver um pequeno edifício antigo. Era a escola! O seu ponto de referência ali estava, a mesma escola de que se lembrava, mas agora sem desenhos nas janelas, sem crianças, sem vida, a mesma escola, mas abandonada e quase em ruínas. Parou o carro, saiu e olhou em volta. Decidiu-se a ir pela esquerda, confiando perigosamente no seu sentido de orientação. Foi andando, olhando para um lado e para o outro, procurando ansiosamente aqueles sinais que guardava na memória. Caminhou uns minutos, amedrontada, mas decidida. De repente, ergueu-se à sua frente o barracão de madeira, tal e qual como se lembrava dele. Devia estar prestes a chegar. Passou o barracão e um pouco mais à frente, lá estava ele: o bosque! Sentiu no ar o aroma a madeira e a terra que em vão procurara, ao longo dos anos. Voltaram-lhe à cabeça as memórias de uma infância longínqua,  do seu esconderijo secreto, da primeira carta de amor que ali escreveu, das construções com pedras e folhas, das guloseimas escondidas que ali comia deliciada. Avançou mais um pouco e olhou demoradamente para cada uma delas: quatro árvores grandes e imponentes que, entre si, formavam um círculo perfeito. Lembrou-se de como no verão os ramos e as folhas de umas se misturavam com os das outras, criando uma cabana de sombra. Aproximou-se de uma e procurou com os olhos e com as mãos. Encontrou, finalmente: gravado no tronco, lá estava o número 9; procurou em cada uma das outras árvores e encontrou os restantes : dois círculos e um 2. Sentiu-se feliz, sorriu e gritou: 2009! No Outono de 1989, tinham-lhe roubado o seu bosque. Na última vez que lá foi, consumida pela revolta de, aos 10 anos de idade, não lhe reconhecerem o direito de escolha, tinha gravado furiosamente estes algarismos, um em cada árvore, simbolizando este conjunto a promessa de um dia voltar ao seu bosque. Olhou para o relógio: eram 11 horas da manhã do dia 18 de Outubro de 2009. A promessa estava cumprida! Sentou-se bem no centro do círculo formado pelas quatro árvores, no centro do seu bosque e soltou uma enorme gargalhada.

11.11.09

Hoje o dia vai ser só meu...



Naquele dia, acordou antes do despertador tocar e, estranhamente, apeteceu-lhe logo levantar. Foi à janela e gostou do que viu. A manhã estava fria, mas clara e ensolarada, finalmente o sol vencera a chuva interminável dos dias anteriores! Tomou um longo banho,  maquilhou-se, penteou-se, vestiu-se e perfumou-se. No final, demorou-se a olhar para a sua imagem reflectida no grande espelho que tinha no quarto. Já nem se lembrava há quanto tempo não se sentia assim, interessante, bonita, cuidada. Olhou-se com mais atenção e sentiu que faltava qualquer coisa. De repente, lembrou-se. Abriu a gaveta da cómoda e lá estava ela, a velha caixa de madeira, que a acompanhava há tantos anos! Abriu-a e deteve-se a olhar cada uma delas, tocando-as, sentindo-lhes a textura, absorvendo as suas cores. Decidiu-se pela lilás, ficava bem com a camisola preta que vestira e a sua forma sugeria a paixão que a inundava, desde que acordara. Colocou-a no peito, um pouco acima de decote, voltou a olhar para o espelho, sorriu para si própria e pensou: hoje o dia vai ser grande e diferente. Hoje o dia vai ser só meu! Pegou na carteira, fez uma festa no gato e saiu, batendo com a porta de casa.

 

23.10.09

A vida é redonda

A maior parte das coisas que me encantam são redondas.  As framboesas e as cerejas são redondas. A lua cheia é redonda. A barriga das grávidas é redonda. A terra é redonda. Quando os lábios se juntam para um beijo, a boca fica redonda. Os olhos do meu cão são redondos. A bola no recreio dos miúdos é redonda. Até a cabeça das pessoas (com uma ou outra variação) é redonda. Tenho a certeza que a nossa vida seria muito mais interessante e gratificante se fosse redonda ou, pelo menos, se algumas coisas passassem a ser redondas. Se as esquinas fossem redondas, duas pessoas caminhando em direcções opostas não chocariam, mas passariam suavemente uma pela outra. Se os cantos das mesas fossem redondos, as crianças não magoavam a cabeça. Se as conversas fossem redondas, todas as palavras seriam suaves. Para mim, a vida não devia ter rectas intermináveis, declives assustadores, ângulos rectos ou linhas intermitentes. Para mim, a vida devia ser redonda.

 

16.10.09

Afinal, a Maria Farrusca existe mesmo...

Hoje nasceu a Maria Farrusca! Quando digo nasceu, quero dizer começar a existir materialmente, ter forma, textura, tridimensionalidade. Nascer verdadeiramente, ela já o fez há muitos e muitos anos. Tem vivido de forma tranquila e protegida, confortavelmente instalada num jardim privativo. Agora, de repente, decidiu revoltar-se. Cansada de estar fechada e de se sentir aprisionada, libertou-se, autonomizou-se  e decidiu que há muito mundo para ver e sentir. Agora, diz que quer conhecer e ser conhecida, dar e receber, comunicar, mostrar, enfim, viver.
Eu, ainda estupefacta com o que aconteceu, não tenho outro remédio senão deixá-la voar. Apresento-vos, portanto, a Maria Farrusca, real, palpável, viva...








14.10.09

A árvore dos porta-chaves

Uma destas noites sonhei que tinha uma casa com jardim. Nesse jardim, havia uma única árvore. Uma árvore estranha, de finos ramos castanhos, sem folhas, nem flores nem frutos. Aproximei-me e olhei com atenção. Dos seus ramos nasciam pequenos objectos coloridos, de variadas formas e texturas. Foi então que percebi: eram porta-chaves.


1.10.09

Apresentando Maria Farrusca...


Ela é a personagem principal de uma história fantástica, feita de cores, aromas, sabores e de uma primavera eterna. Não tem aparência e características definidas, surge consoante é imaginada. Vive num mundo privado, alimenta-se das ideias e fantasias de quem a criou e, sempre que contempla o nascimento de um novo objecto, pinta-o com as suas cores preferidas e explode numa sonora e contagiante gargalhada.